“Xibom Bombom” e a luta de classes no Brasil

André Ed
5 min readApr 13, 2021

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Em 1999, o grupo de axé As Meninas lançou a música “Xibom Bombom”, uma das mais tocadas do ano. Além da melodia dançante e facilmente reconhecível, sua letra era marcante e destacava elementos interessantes, diretamente relacionados ao nosso cotidiano. “Analisando essa cadeia hereditária / Quero me livrar dessa situação precária / Onde o rico cada vez fica mais rico / E o pobre cada vez fica mais pobre”. Antagonismos de classes expostos visceralmente na música! Quem nunca a ouviu, aproveite.

No dia 06 de abril, essa música inevitavelmente me veio à memória quando me deparei com duas notícias: no caótico cenário pandêmico que estamos vivenciando, enquanto 11 novos bilionários brasileiros passaram a integrar a lista da Forbes, a fome voltou a crescer depois de 17 anos — com mais da metade da população sem segurança alimentar, ou seja, sem saber se terá comida nos próximos dias. Realidades discrepantes, não? 11 pessoas são as mais novas bilionárias; cerca de 19 milhões de pessoas estão passando fome por conta da pandemia. O Brasil, que saiu do “Mapa da Fome” em 2014 — durante o governo Dilma Rousseff (PT) –, retornou em meados de 2018, no último ano de Michel de Temer (MDB) na presidência — que agravou políticas neoliberais, que já estavam em curso.

A enorme diferença que observamos não se trata de acaso, “meritocracia”, “sorte”, “azar”, nem nada disso: se explica pela própria constituição histórica e social do Brasil. Vale dizer que não somos de um país pobre: atualmente, o Brasil é a 12ª economia do mundo — já foi a 7ª economia no início da década de 2010. No entanto, nem todo mundo tem “lugar ao sol” por aqui: o Brasil é um dos países mais desiguais do planeta, com uma absurda disparidade de renda e privilégios patrimoniais. Quando se trata de concentração de renda, o vice-campeonato mundial é nosso: o 1% mais rico da população abrange 28,3% do total da renda do país! Perdemos apenas para o Catar, com taxa de 29%.

Se torcermos um livro de história do Brasil, provavelmente escorrerá sangue. Ao longo do tempo, o país se constituiu, entre outras coisas, com base em complexas relações de dominação, explorando brutalmente o trabalho, sobretudo, dos escravizados negros e dos indígenas. Posteriormente, com o paulatino processo de consolidação do capitalismo, o fim da escravidão e a difusão do trabalho assalariado, a exploração da força de trabalho se perpetuou. Colônia, Império, República: independente da fase a que nos referimos, podemos encontrar o choque de interesses entre aqueles que possuíam os poderes econômico e político e aqueles que só dispunham do próprio corpo para sobreviver: a famigerada luta de classes — claro, com as devidas especificidades de cada período.

Nesse processo, o Estado, um instrumento político, assumiu o papel de garantir os privilégios e os interesses das classes dominantes. Não custa lembrar, por exemplo, que a escravidão era legal; nas primeiras décadas do século XX, trabalhadores não contavam com legislação trabalhista que lhes conferisse direitos — não à toa, o alto índice de greves nos anos 1910 e em posteriores. Durante a ditadura militar, economistas prometiam que o “bolo” deveria “crescer” para, depois, ser “dividido” — o que nunca aconteceu. Em suma, o fosso que separa as classes não é de hoje…

Para piorar, o Brasil possui uma lógica de impostos regressivos, ou seja, que incidem diretamente sobre o consumo, não sobre a renda — o que, na prática, faz com que pessoas mais pobres paguem mais impostos do que as mais ricas. Um exemplo básico: proporcionalmente, um pacote de feijão fica mais caro para uma pessoa de alta ou de baixa renda? E por que existem impostos sobre bens de consumo difundidos como carros, mas não há IPVA para helicópteros, jatos, lanchas, iates e afins?

A pandemia da covid-19 acentuou uma realidade que já era bastante cruel. A precarização econômica se faz evidente: cada vez mais, lidamos com o aumento da carestia de vida, que impede que parte da população não tenha acesso a itens básicos, como arroz e feijão. O governo Bolsonaro, a contragosto, pagou um insuficiente auxílio emergencial de R$ 600 em 2020; em 2021, está se dispondo a pagar R$ 150. Ao passo que economizava gastos no combate à pandemia, o governo destinou, de bom grado, R$ 325 milhões dos lucros do Banco Central para pagar os demais bancos. Novamente, fica evidente a prioridade das classes dominantes.

O cenário caótico da pandemia não impediu bilionários de atingirem altos índices de lucro, mas impede que a maioria da população consiga sobreviver em condições minimamente adequadas. Estudo de Suzana Pasternak, por exemplo, ao analisar a cidade de São Paulo, reforça que o índice de mortes é mais expressivo na periferia do que nos bairros mais centrais. Mulheres negras estão entre as mais prejudicadas pela pandemia em termos de perda de renda — em um país cujo desemprego é elevado. É impossível realizar uma necessária quarentena se o Estado não prover condições adequadas para que as pessoas possam se sustentar; com auxílios emergenciais irrisórios e expressivos benefícios a bancos, a fome e as mortes são dados concretos do cotidiano.

Não há como sermos tolerantes com uma perspectiva de país que, diariamente, sacrifica a ampla maioria para beneficiar uma minoria já privilegiada. Medidas emergenciais, por exemplo, poderiam envolver a taxação de grandes fortunas — que nunca foi regulamentada, ainda que conste na Constituição de 1988. Enquanto a discussão não avança — e os obstáculos são inúmeros –, iniciativas populares, como comitês de ajuda mútua, procuram aplacar a fome e a pauperização. No entanto, não são suficientes para lidar com uma demanda cada vez maior. Poucos seguem se beneficiando em meio ao caos; a ampla maioria se torna cada vez mais prejudicada. Como As Meninas bem cantaram em “Xibom Bombom”: “é que o de cima sobe / e o de baixo desce”.

Nota: o texto, com algumas variações, também foi publicado em minha coluna quinzenal no “Nota de Rodapé”, que está presente no Youtube, no Instagram e no Facebook.

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